Filosofia e Liberdade por Astrid Sayegh

FILOSOFIA E LIBERDADE

Astrid Sayegh

            Cumpre, diante dos tempos atuais, caracterizado por rupturas, problemas existenciais e ausência de valores, exaltar o papel da filosofia como norteadora de consciências, em função de um rumo legítimo, e não tão somente circunstancial. Por legítimo entende-se aqui o percurso que visa a realização do homem como um fim em si mesmo, e não como um fim exterior a si. Nesse sentido cabe à reflexão filosófica, particularmente espírita, o despertar de uma existência autêntica, pautada nos valores essenciais, fundados na natureza original do ser- espírito. Tal apelo já nos fizera Jesus, ao exaltar de forma metafórica, a importância da busca de Deus, não em termos de religiosismo, mas como destino transcendente da existência, dada a natureza e atributos originais do ser; a busca de Deus assim concebida não deve ser tampouco um meio de se alcançar uma condição existencial tranqüila, mas um fim em si mesma, qual seja, a realização da natureza do Espírito.

            Nesse sentido, entre outros, sem a filosofia, as concepções religiosas podem estagnar-se em suas concepções cristalizadas, e mesmo os discursos espíritas, por mais louváveis que sejam, correrem o risco de se tornarem dogmáticos. Não me refiro aqui a dogmas de fé, como realidades impostas, mas a formas de abordagem do conteúdo doutrinário que, por vezes, não inspiram a abertura para a consciência crítica, para a formação da consciência autônoma, o que caracterizaria a verdadeira consciência espírita.

            Por dogmas podem ser entendidas aqui as idéias solidificadas, tomadas como acabadas, os ditos chavões, e que não são abordadas de forma liberta, em sua riqueza conceitual; poder-se-ia estender tal denominação às afirmações repetitivas, sem aprofundamento, e que não induzem a um crescimento qualitativo, mas ao hábito, a uma postura de acomodação ao já definido, mesmo que entendido de modo abstrato. Kardec mesmo nos incita a adequação da Doutrina diante de inovações, mas não podemos deixar de inovar também as próprias formas de dizer a doutrina espírita, de modo a acompanharmos, não só o progresso da ciência, mas a urgente adequação às exigências culturais dos novos tempos. Não podem mais as fecundas questões espíritas restringir – se aos mesmos temas de sempre, mas cumpre conduzir um estudo sério e metódico de seus fundamentos e raízes filosóficas, de modo a abordar e divulgar os princípios espíritas cristãos de forma inovadora e liberta, isto é, sem educar sub-repticiamente através de condicionamentos. Cumpre uma linguagem acessível sim, mas também inovadora, e que venha a resgatar a racionalidade do Evangelho, de modo a adesão a virtude ser uma forma de vivenciar a própria liberdade. Educação Espírita é educar para a liberdade, e liberdade sem autonomia racional é um discurso vazio e abstrato.

            Educar para valores, e não para formas; educar para o futuro e não apenas para resgatar o passado; educar para transformar eticamente e não apenas aceitar o errado passivamente, a pretexto de humildade; educar para construir a história e não apenas acomodar-se aos discursos acabados. Educar para a criação interior e não apenas para a repetição do mesmo. Educar para a liberdade é educar para que o indivíduo venha a fazer escolhas adequadas, como pregam os filósofos atuais, mas também fazer da existência uma forma criativa, uma forma de construir, inovadora de ser, e é esse o discurso transcendente que prega o cristianismo. Transcender não é misticismo, mas acrescentar algo novo à personalidade espiritual de forma consciente.

            Não basta somente viver, isto é próprio aos seres naturais, Espíritos são existentes, e que enquanto tais devem pautar a existência com um fim consciente, e fins ascensionais. Eis a mensagem de Herculano Pires, ao estabelecer o conceito de existente, como aquele que visa adequar-se a sua essência espiritual. Como ensinar os caminhos existenciais sem considerar as questões filosóficas? Como abordar conceitos tais quais, educação, liberdade, problemas existenciais, finalidade, essência, ética, moral, razão, e tantos outros, sem recorrer à filosofia?

            Platão já afirmara a importância da reflexão filosófica, como forma de educar a visão, isto é ir além das imagens aparentes e simulacros e projeções em direção ao inteligível, isto é, em direção ao ideal, ao pensante. O atributo do Espírito, segundo a Filosofia Espírita é o pensamento, e, portanto desenvolver, educar a atividade pensante de forma disciplinada e metódica é manifestar atributos e realizar-se como um modo da substância divina. Muitos questionarão, mas o que é substância? Termo empregado por Emmanuel e que a filosofia responde. E o que são atributos? Termos empregados pelos Espíritos e que, entre muitos outros empregados na codificação, a Filosofia responde.

            O mundo autêntico é o mundo do pensamento, mas não o pensamento voltado para coisas, ou para a exterioridade, mas o pensamento que visa o transcendental, o metafísico. Cuidemos para não coisificarmos o sentido espiritual de nossa tarefa, ao enaltecermos os valores institucionais, acima das verdades essenciais, poisestaremos tomando como real esse mundo de projeções, imitação do real, a que se refere Platão, e não a verdade substancial e viva da alma, que transcende nomes, relações ilusórias de poder, de espaço, a qual não tem dono e nem se limita ao tempo. Tal comportamento há de inspirar as gerações futuras, em cujas mãos há de se desenvolver o Espiritismo. Cuidemos assim do significado de nossas tarefas, criemos escolas renovadas, para que não formemos consciências cativas de si mesmas, mas antes abertas para o mundo em mutação, para o novo, para um futuro criativo.

            Nesse sentido a filosofia não é coisa do passado, pelo contrário, ela é a ciência à qual, segundo ideais iluministas, cumpre estabelecer uma crítica racional do presente em função da construção de um futuro consciente, e poucos conhecem este aspecto; a filosofia é ainda sempre jovem, pois suas verdades não são efêmeras, não se esgotam, pois não se referem às coisas que deixam de ser, a modismos, ao contrário, revitalizam o ser, geram a interioridade, incitam a adequar-se a essência, num sentimento sempre inusitado, num momento sempre novo. Filosofar é um movimento da alma que gera a alegria interior. Assim como a criança é a maior filósofa, pois sempre quer saber o porquê das coisas, o filósofo é gerado pela mesma alegria da criança, pelo seu ímpeto de desvelar um mundo sempre novo.

            Seja, pois a destinação do Espírito atingir a vida interior, invisível aos homens, o exercício do seu poder pensante, que lhe faculta assim a liberdade de autodeterminar-se como ser moral; que lhe faculta viver a vida, mas de forma consciente, isto é, projetar a existência, mesmo diante das dificuldades, com um novo significado, como contínua forma de superação. Eis o papel da filosofia diante dos problemas existenciais.

            Negar a filosofia é negar nossa própria natureza, é negar nossa transcendência, é negar alimento espiritual para si mesmo. Se, segundo o conceito espírita, Deus é a Inteligência Suprema, ela nos ensina, acima do religiosismo, parafraseando Hegel, a admitir, a filosofia, como sendo ainda o próprio exercício do Absoluto.